Anotação de aula #2: a harmonia de "estar junto"

Para que serve Hwa ?

Hwa (chin.: 和; cor.:화) está posto como um dos três grandes princípios a conformar o núcleo geral do Hapkido. Dizem-nos com frequência: "se o adversário empurrar, puxe; se ele puxar, empurre". Isto é hwa. Mas, de modo claro, existem outras aplicações para esse conceito em nossa prática dentro, ou fora, do dojang? Qual o sentido, a utilidade, a extensão, e o benefício escondidos sob tão breve explanação?... 

I. Entendendo o princípio do Equilíbrio e Harmonia: Hwa

O caracter 「和」 é composto por uma “boca” e um “grão de cereal”, significando basicamente “estar junto”. Creio ser essa a mensagem principal. Quando temos um problema, temos de aprender a “estar junto” do problema. Não basta pensarmos “Ah, mas não gosto disso! Quero que tal coisa desapareça rápido! Prefiro, talvez, fugir para a Disneylândia!” Esse tipo de atitude nos impede de ver com clareza e de trabalhar com inteligência sobre a situação que já está posta; ao invés de negá-la, ao invés de nos alterarmos com aversão e ira, a harmonia nos diz para “estar junto”: aceitar as circunstâncias e, então, resolvê-las de modo pleno.

Como isso funciona? No dia-a-dia, podemos ficar doentes, sofrer perdas, cometer erros, e nos deparar com situações das mais inusitadas. Em geral, até nos esforçamos com zelo para que tais eventos não ocorram; gostamos da paz e da tranquilidade que imperam na ausência dessas frustrações. Assim mesmo, é inevitável: mais hora, menos hora, depararemo-nos com dificuldades. Afinal, seria-nos possível não errar? Seria-nos possível vencer sempre? Conseguiríamos evitar doença, envelhecimento e morte? Uma análise sincera revela que não... Daí, convém uma primeira lembrança: hwa tem de ver com a consciência nítida dos fatos; observá-los e compreendê-los tais como se apresentam, sem artificialidades. Por isso, hwa é às vezes traduzido como o princípio da "não resistência". Ao invés de resistirmos à realidade, desgastando-nos com raiva, ressentimento ou desculpas fúteis, buscamos respirar fundo e compreendê-la. Buscamos uma perspectiva realista, porém construtiva - e útil.

As dificuldades e sofrimentos, bem como os erros e derrotas, podem funcionar como quebra-molas no caminho: eles nos alertam a reduzir nossa velocidade e tomar cuidado com o que vem adiante. Eles podem nos servir como uma recordação para reavaliarmos nosso comportamento e de algum modo melhorar. Essa utilidade, contudo, só nos é desvelada quando aprendemos a “estar junto” - a aceitar e contemplar o fenômeno com uma mente aberta, livre de aversão e de pré-conceitos. A seguinte história ilustra este ensinamento de um modo provocativo:

Extraído de :<  http://winstonsmith.free.fr/__/library/chih_chung/zq-2.html>

II. Lutando com Hwa: o Princípio na Situação de Enfrentamento 

A mesma lógica é válida no ambiente do enfrentamento. Aliás, Hwa transforma "enfrentamento" em "acolhimento"; o adversário e suas ações passam a ser "acolhidos" como meio para desvelar a vitória. Se observarmos bem, a luta pode servir como um microcosmo onde entendemos direta e rapidamente princípios como este. Quando estamos face à face com um adversário, temos de estar suficientemente atentos para “estar junto” dele; isto é, estar cientes de suas estratégias, de seus movimentos, de suas intenções, de seus pontos fortes e fracos. Isto é um enfrentamento segundo Hwa: é um enfrentar acolhendo. Se não estivermos atentos e conscientes para acolher essas realidades que o oponente expõe, se as negarmos, não estaremos aplicando hwa; estaremos mais vulneráveis e em desarmonia. E por que razão? Porque ao lutar desejamos vencer; e, para vencer, é importante entender o jogo adversário. Como dizia o estrategista Sun Zi: "Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas." Mas quando apenas imponho força e técnica, sem atentar às características e ações do opositor, pode-se dizer que meu proceder está em desarmonia com o objetivo de vitória – pois minha desconsideração alheia traz-me chances de ser surpreendido e de sair perdendo. Esta, também, é a razão de falarmos sobre lutar “com alguém”, e não “contra alguém”.

Atentamos aos fatos e aprendemos a encará-los sem nos perturbar. Ao tomar um golpe, por exemplo, é mais hábil não se irritar. Melhor aceitá-lo e buscar entender: o golpe recém levado sinaliza um possível erro, que fará bem de ser corrigido ainda na mesma luta. De modo similar, tal golpe também revela a estratégia do adversário; conhecendo-a, acolhendo-a, sempre haverá mais chances de ajustar-se e tirar proveito dela. Isto segue de acordo com hwa. Assim, harmonizar-se às circunstâncias é, no Hapkido, o primeiro passo para obter o melhor resultado delas...

Em caso de dúvidas... Um exemplo prático, apenas a nível ilustrativo.

III. Praticando no Dojang, Praticando na Vida  Em nossa prática no dojang, corremos, movimentamo-nos e fizemos rolamentos segurando o adversário por um braço. Um exercício em duplas. E essa é uma expressão grosseira de Hwa. Trata-se de um “estar junto” óbvio, constatável visualmente. O aspecto mais sutil de hwa se manifesta quando, nesse exercício, algumas das duplas (em geral as mais jovens!) se irritam e discutem: “Ei, como você não consegue fazer isso! Que coisa....!!” A pessoa tinha de respirar fundo, criar coragem e paciência com o colega, aceitar-lhe a dificuldade e diminuir a própria velocidade para conseguir ajudá-lo. Hwa está aí! Esta é a mais perfeita simbologia de como funcionamos. Em meio a conflitos, aceitar erros alheios e ajudarmos cordialmente na sua superação é boa prática de hwa; em meio a nossa prática, aceitar nossas dificuldades e insistir pacientemente até superá-las, é boa aplicação também.

Em suma, Hwa (a harmonia, ou equilíbrio, de "estar junto") evoca um importante desafio: olhar com amplitude e lucidez, consciente das coisas tais como se apresentam. É "estar junto" da realidade. Quem olha com amplitude vê mais do que o aparente, vê mais do que uma única perspectiva das coisas; trata-se de alguém capaz de olhar e compreender o mundo do outro. Na luta, ele vence a estratégia alheia. Quem olha com lucidez, não se deixa abater pela aversão, nem se conduzir por emoções perturbadoras de qualquer tipo; tal praticante consegue aceitar o difícil e o desagradável, enxergando possibilidades de resolução maravilhosas. Na luta, ele converte desvantagem em logro. Aceitar ao invés de remoer; acolher ao invés de rechaçar; encarar ao invés de fugir; ouvir ao invés de ignorar; alegrar-se ao invés de se irar; respirar ao invés de explodir; adaptar-se ao invés de desistir... São todas expressões do mesmo princípio. 

Atentos ao problema, aceitamo-lo com serenidade, caminhando a fim de convertê-lo em algo útil; seja no dojang ou no dia-a-dia, isso reflete hwa, isso reflete bom Hapkido.

Hapki!